segunda-feira, outubro 02, 2006

Uma breve leitura de Eros e civilização

Segundo Freud, a história da humanidade é a história de sua repressão. A civilização só tem início no momento em que o objetivo primordial do ser humano, isto é, a satisfação integral de suas necessidades (o princípio de prazer) é abandonada. Esta realização plena e indolor estaria em desacordo com o "projeto civilizatório", cuja existência requer uma apropriação repressora dos instintos. O indivíduo chega à conclusão traumática de que a plena gratificação de suas necessidades é impossível, e, dessa forma o princípio de realidade acaba por vencer o princípio de prazer. O homem abre mão do prazer momentâneo para depositar as suas crenças de felicidade em acontecimentos futuros e adiados.
O princípio de realidade é aquele constituído a partir de um sistema de instituições baseadas na lei e da ordem. Evoluindo dentro de tal sistema, o indivíduo entra em contato com tais regras de comportamento, as quais requerem uma auto-repressão regulada dos instintos e pulsões por uma série de leis, convenções ou mesmo "tabus”. Contraditoriamente, agir contra os instintos reprimindo-os é o que se considera ser "civilizado". O princípio de realidade é guiado pelo princípio de desempenho, o qual, por sua vez, deriva da organização social erigida em função da esfera do trabalho, propagadora da alienação e da dominação.
A sexualidade tem um papel predominante na natureza do aparelho mental. Os processos mentais primários são governados pelo princípio de prazer, sendo assim, o sexo é aquele instinto que, quando realizado, não só proporciona prazer, mas atua como o próprio perpetuador da vida, sendo dessa maneira O instinto da vida. Uma vez que o princípio de realidade impõe uma série de desvios ao processo de gratificação, o homem passa a perceber a realidade como algo predominantemente hostil. E para sobreviver em meio ao mundo hostil da "civilização" faz-se necessário um indivíduo forte, cujo fortalecimento se dá precisamente por meio da realização dos instintos sexuais e das demais pulsões. E é precisamente isso que a "civilização desenvolvida" é incapaz de fazer, pois, para assegurar a própria existência, intensifica os controles sobre os instintos.
Não admira que a sexualidade seja tratada com certo ar de “perversão”. A instrumentalização racional da civilização, que a tudo açambarca para a esfera da produção industrial, não poderia deixar a sexualidade em seu estado latente: o ser humano é deserotizado para que a sua energia sexual seja convertida em energia potencial de trabalho. O trabalho é labuta desagradável e por isso tem de ser imposto. Caso contrário, que motivo levaria o homem a abandonar o prazer sexual – que lhe garante prazeres inteiramente satisfatórios - para dispender a sua energia com outros fins? Ele jamais se afastaria desse estado original e nem realizaria maiores “progressos”. Em outros termos, a civilização adquire grande parte da energia de que necessita retirando-a da sexualidade. Seja na rotina de trabalho extenuante que consome quase que integralmente as energias do indivíduo, seja ao esbarrar em convenções sociais que impedem o acesso à realização sexual, em ambas as hipóteses verifica-se o processo de dessexualização.
Assim, a civilização acaba por mergulhar em uma contradição dialética: afim de regular os instintos, acaba por liberar justamente as forças contra as quais luta, as forças de destruição. A civilização avança conduzindo a liberação de forças destrutivas cada vez mais fortes, o que também redunda em mecanismos de controle e repressão cada vez mais “eficazes”. A civilização é capaz de controlar as ameaças diretas por meio do sistema administrativo, mas não é suficientemente capaz de eliminar a agressividade acumulada. “A racionalidade do progresso agrava a irracionalidade de sua organização e direção”. Pode-se dizer que a destruição da vida progride com o “progresso” da civilização. A destrutividade se perpetua para além dos limites da racionalidade.
O crescente domínio da natureza, aliado à crescente produtividade no trabalho não assegura em absoluto a satisfação das necessidades humanas. Em uma via totalmente oposta, esses fatores apenas conduzem a civilização a um processo de destruição progressiva e reivindicam a necessidade do aprimoramento contínuo dos mecanismos de repressão. A busca incessante pelo progresso material infinito em um planeta cujos recursos naturais são finitos, só pode levar ao colapso. No afã de registrar sucessivas melhorias em sua qualidade de vida buscando o aperfeiçoamento tecnológico, a humanidade acaba registrando quedas sucessivas nesses mesmos índices, dada a crescente exploração irremediada da natureza e dos destinos dos homens. O homem paga com a supressão de seus sonhos, de sua consciência, de seu tempo e de sua felicidade, ao passo que a civilização paga com o não cumprimento das promessas de liberdade, igualdade e paz para todos.
Sendo assim, os instintos de morte e destrutividade não ocorrem por acaso, pelo mero interesse destrutivo, mas pelo alívio de tensão. A opção pela morte é uma fuga à dor e às carências vitais. Expressa a eterna luta contra a repressão e o sofrimento. Esse mesmo sofrimento deriva de dois aspectos fundamentais: 1) a inevitabilidade da morte e da degeneração do corpo; 2) a não-realização integral das necessidades instintivas. 3) A incapacidade humana de se organizar de maneira satisfatória.

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