terça-feira, maio 11, 2004

Um suspiro de liberdade

6 da manhã, anuncia o despertador. Chove. "Maldição", pensa Marcelo, "uma manhã de segunda-feira com chuva". Levanta-se arrastando seu mau-humor cambaleante devido a mais uma enfadonha semana que terá de enfrentar na repartição. Com os olhos ainda semi-cerrados, encara o asfalto pela janela cuja escuridão passa a se desfazer através dos primeiros raios de luz que emanam do horizonte inatingível. "Mas...o asfalto não está molhado! Como poderia ter chovido então? Agora pouco eu ouvia o tilintar dos pingos..." Deu de ombros e seguiu corredor à fente.
Marcelo sentia-se estranho. Seu corpo levitava sem sair do chão. Sentia-se quente, fraco, mas imponente, indisposto, mas ávido por questionamentos. E o fato da chuva que se intrometera em sua manhã o intrigava. "Será que, por esse lapso de tempo escasso eu estou experimentando a sensação da velhice? Não, não...como posso ser tão presunçoso? E quem disse que a velhice só é feita de decepções e lamúrias? Quem? Como posso ser tão presunçoso?" Ao mesmo tempo o seu lado burocrático o cravejava com palavras de ordem: "Ora, cale essa matraca. Não perca tempo com besteiras. Tempo é dinheiro. Apresse-se. Sua escrivaninha pequena na salinha mal-iluminada da repartiçãosinha pública metida no prédiosinho acinzentado na ruasinha apertada o aguardam!" No que ele respondia: "Pro inferno, você e suas fascínios pelos métodos!" No entanto, era preciso. Era preciso trabalhar. Por mais odioso que fosse. Afinal, bastava um simples estalar de dedos do chefe e ele estaria fora, no tal olho da rua como alguns preferem. E ai oque faria? Oque havia de ser dele? Poderia matar! Sim matar. Era uma boa saída. Viraria um assassino por encomenda. E suas primeiras vítimas seriam seus "colegas" da repatição. "São menos dignos do que ratos. O rato, uma vez encuralado na parede pula sobre seu agressor. Eles não. Eles começariam a chorar como bebês indefesos e pediriam indenisação por danos morais"
Mas logo essa idéia se desfez junto com outros pensamentos que, ainda disformes, não ousaram subir à tona. O tempo passava rapidamente e ele engolia a comida, simplesmente, engolia. Como num ato já mecanizado. O ato de comer era um reflexo de sua vida, até agora. Pragmático e mecanizado, até agora. Pois agora tudo mudara. Marcelo transgrediu a norma que lhe foi imposta durante toda a sua existência. Marcelo entregou-se aos questionamentos da vida. Mas agora compreendia, pelo menos algo vindo de seu íntimo assim o dizia. Era a chuva. Não chovera lá fora e sim dentro de sí. E agora que as nuvens da tormenta se dirigiam para onde seus olhos não as alcançavam, um halo iluminado de incertezas abria-se em seu âmago. Havia de chover novamente. Havia de chover.

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