domingo, junho 27, 2004

Reminiscências de uma vida futura

Já lá estava há mais de duas horas. O bater incessante do pé esquerdo demonstrava um certo ar de nervosismo, isto, sem mencionar a paciência perdida no desenrolar desses cento e vinte minutos eternos. A roupa, impecavelmente limpa e bem passada, o chapéu à francesa, a bengala e o vinco da calça, todos em perfeito estado, poderiam traduzir a qualquer um que passasse que o detentor daqueles utensílios tratava-se de um homem distinto, ou, na linguagem mais falada, "um gajo de sangue do bom". Seus olhos negros de um brilho miúdo de vela que a vida se encarrega de ir assoprando aos poucos, seriam o suficiente para esclarecer para alguém de maior sensibilidade que uma melancolia degenerativa se encarregara de consumir sua essência durante anos a fio. As costas curvadas para frente e o modo como entrelaçava as mãos batucando um ritmo contínuo com o dedo indicador da mão direita e o queixo metido próximo ao pescoço tornavam claro o sintoma da resignação. Era um homem de poucas palavras para com os outros, mas sentia-se suficientemente confortável para traçar os mais variados diálogos consigo mesmo. Uma vida multifacetada tomara conta daquele homem. Os personagens surgidos do ventre de sua personalidade polivalente tomaram conta de seu corpo. Ao mesmo tempo, convertera-se numa criatura insular, visto o asco que lhe causava o menor convívio com a espécie humana. As incessantes faladeiras acerca de assuntos medíocres, as lamentações, os ébrios em seu balé tortuoso pelas vielas sebosas da madrugada, os gases putrefatos que emanavam de seus corpos em erupção e das chaminés de suas usinas nocivas, a forma abjeta de sorver a comida e o modo selvagem como praticavam a arte a qual chamavam 'amor'. Tudo isso, revirava seu estômago.
Passaram-se duas semanas. Fizera daquele corredor sua morada, criou raízes naquele local. Raízes de verdade, pois as linhas de sua roupa já se enroscavam como trepadeiras no banquinho verde em que passava a maior parte do tempo. Certa manhã acordou com uma friagem descomunal que subia dos pés a cabeça e parecia congelar seus ossos delicados. Com os olhos ainda semicerrados, teve tempo de mirar a silhueta de sua calça dobrando a porta de entrada. Sentiu-se triste pela perda da colega, mas não pôde deixar de saborear certo gosto de vitória com a ocasião, afinal, acabava de desvendar o porque dos sumiços repentinos de suas roupas. Elas simplesmente iam embora quando se enfastiavam do dono, concluiu. Tratou de adquirir nova indumentária na ferinha montada logo à frente do recinto.
Foi quando topou com uma tribo cigana conduzida por um macaquinho do realejo trazendo a mais nova invenção do oriente próximo. Um astrolábio que tinha a capacidade de ler o futuro das pessoas. Quando o indagaram se queria tentar a sorte, apenas fez um gesto de reprovação mantendo os olhos no horizonte à procura de novas calças. O macaquinho insistia puxando os pêlos de sua perna desnuda e ele apenas o repelia com chutinhos discretos.
Dois meses transcorreram junto com a areia da ampulheta. Acordou com o alarme do relógio cuco e viu que um lagarto portentoso o encarava saudando-o com o vai-e-vem de sua lingüinha cortada em forma de “v”.
- Bom dia – disse o lagarto.
- Bom dia.
- Sabe, vi sua calça perambulando pelas bandas do deserto do Atacama.
- Como sabia que era minha a calça?
- Ela me disse oras. Perguntou se eu podia dar um “alô” se passasse por aqui, e cá estou.
- Certo.
- Mas já me vou, preciso tomar um banho de Sol e vejo que você não é muito de prosa. Até meu chapa.
- Até, obrigado pela visita.
E o réptil carismático seguiu seu percurso sinuoso rumo ao horizonte desconhecido. Alguns meses transcorreram sem nenhum incidente de grande magnitude, até a chegada do general Otto Van Der Chauss e sua tropa de guerreiros prussianos, todos mortos numa guerra do século dezoito. O general queria saber da taberna mais próxima para abastecer sua extenuada guarnição para que pudessem estar em sua mais exímia plenitude belicista quando os mouros tornassem a atacar. O homem apenas indicou o estabelecimento com a cabeça. Foi sua primeira e única experiência com fantasmas, um fato tão surpreendente quanto insólito que nunca mais deixou de povoar sua memória.
Os anos transcorriam junto com a areia da ampulheta. O seu ar sorumbático tomava a aparência das flores que se omitem dos beijos dos raios de Sol. Seu asco pela espécie humana confundia-se com a volúpia reprimida durante toda a vida, reservada para si mesmo, para os personagens que puxavam as cordinhas que lhe davam movimento. Quando a esperança estava quase perdida, o inesperado aconteceu. A porta azul do corredor finalmente se abriu. A fumaça olente que suas narinas sorviam com intenso regozijo lhe rejuvenesceram cinco anos. Ao entrar no quarto decorado com temas hinduístas, seis ninfas fisgaram-lhe pelo olhar rejuvenescendo-o mais três anos com esse simples gesto. Seu coração palpitava incessantemente tentando bombear inutilmente todas as emoções reprimidas por uma vida, emoções que se fundiam em um só impulso animalesco provindo de seu ventre ávido por brincadeiras mais carnais. Rejuvenescera mais sete anos e quando se deu por conta, já estava rolando pela cama com as seis consortes percebendo quanto tempo havia perdido no banco gelado da insegurança. Por um instante uma centelha de felicidade se acendeu no seu espírito, mas não pôde desfrutar muito tempo desse novo e perigoso sentimento, rejuvenescera tanto que era agora uma criança em meio a seis corpos ardentes. O ato de voltar no tempo se deu de tal forma que agora se encontrava imerso na barriga de sua mãe. Havia vislumbrado toda uma vida antes mesmo de nascer. Talvez fosse a sua, talvez não. Mas uma coisa era certa: havia de se chamar Aurélio Genevides.

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