terça-feira, outubro 18, 2005

NO FIM, O QUE NOS DIZ A CABEÇA-DE-PORCO?



Brasileiros e brasileiras serão intimados neste outubro a comparecer às urnas para exercer novamente o papel democrático do cidadão. A manifestação do direito do voto, neste caso, não se deve à escolha de um novo presidente, governador, ou até mesmo prefeito. O que o estado quer é que esta nação, povo influenciável por qualquer discurso ufanista razoavelmente tangido, decida se o artigo 35° (Capítulo VI - disposições finais) do Estatuto do Desarmamento deve ou não entrar em vigor. Colocando de forma mais direta, a pergunta que nossa voz responderá com "sim" ou "não" é: a comercialização de armas de fogo e munição deve ser proibida no Brasil?

A primeira impressão que se constrói da questão, leva-nos ao senso comum: o cidadão entrega sua arma, o bandido não; sendo assim, este teria mais liberdade para agir. Devo contestar. O que o estatuto contempla na forma mais primária é evitar o uso despreparado da arma de fogo por parte do cidadão comum. Não se espera a aderência do bandido à moda do desarmamento. Seria até bizarra essa situação: "hei, senhor bandido, por favor, por gentileza, por obséquio, entregue sua arma, seu instrumento de trabalho, pare de assaltar. O Brasil agradece.". Comovente, não? Mais utópico, só propor uma rendição voluntária em massa. Mas, voltando à questão, o que seria este uso despreparado?

Não são poucas as notícias veiculadas na grande mídia referentes a acidentes envolvendo "tiros involuntários". Tragédias movidas por razões passionais, impulso, instinto ou emoção, compõem parte significativa das mortes por armas de fogo que ocorrem todo ano no país. Além disso, acidentes domésticos envolvendo crianças e adolescentes constroem uma realidade incompatível com o ideário dos entusiastas do "não". O que diriam para tentar rebater este fato é um velho chavão, que faria Hobbes orgulhoso por se remeterem ao mal inato do ser humano: "o que mata é o homem, não a arma". Ou seja: não importa se é com um 38, uma faca cozinha ou um saca-rolhas. Se a vontade de matar bater, qualquer utensílio, por mais inofensivo que seja, torna-se uma bomba atômica. Longe de mim discordar que tais objetos representem perigo. Entretanto, fico imaginando uma situação como "amor, me empresta seu 38 para cortar o bife?", ou ainda "querida, vou pegar sua Glock para abrir o vinho". Utensílios de cozinha que compramos em supermercados tornaram-se indispensáveis à nossas vidas. Armas de fogo, não.

Segundo pesquisa realizada pelo SUS, entre 2003 e 2004, época em que vigorou o desarmamento como campanha, o Brasil experimentou uma redução de 8,3% no número de mortes por armas de fogo. Dizem uns que os dados são expostos de forma parcial. Outros, céticos por teimosia, dizem que são forjados. Por mais que se conteste, a relação evidente: a campanha do desarmamento trouxe redução nos índices de violência. Todavia, em 2002, apenas 3 900 armas foram vendidas por vias legais para civis em todo território nacional, número que regrediu nos últimos dois anos. Como poderiam ser elas as culpadas pelos 36 091 assassinatos relacionados a armas de fogo no ano de 2004?

Obviamente, nem toda morte é causada por arma legal. Entretanto, não podemos esquecer que toda arma de fogo leve (pistolas e revólveres) que circula ilegalmente no Brasil, já teve uma trajetória legal. O livre comércio para a população civil representa o principal meio de reposição deste tipo de armamento. Há dúvida de que um assaltante abandonaria a chance de levar consigo a arma da casa que ele assalta, caso a encontrasse? Apesar dos números tímidos apresentados pelo mercado legal, a existência do mesmo e a falta de controle sobre a arma no momento em que ela chega ao cidadão ainda representam ameaças.

Apesar de ser a favor do desarmamento e acreditar que a proibição da comercialização de armas de fogo representa um benefício para o país, devo concordar com um dos argumentos levantados pelos que se colocam contra. Alguns civis realmente precisam de armas. Por exemplo: pequenos agricultores que moram em locais de difícil acesso para a polícia; policiais aposentados que realizaram prisões emblemáticas durante a carreira e por isso vivem sob mira constante de bandidos; juízes e advogados criminais, responsáveis diretos por condenações de meliantes. O fim da comercialização no Brasil de fato lhes representaria riscos. Entretanto, colocar a posse de arma de fogo como sagrado direito do ser humano já é um pouco de exagero. O discurso se faz no intuito de convencer o público de que o porte é direito inabalável de todos, conquistado na superação de dialéticas maniqueístas e lutas epopéicas.

Exposto os argumentos, falo de meus motivos mais pessoais. Eu sei que, algum dia, ainda vou me envolver numa briga com meu vizinho. Não quero correr o risco de ser ameaçado por uma arma de fogo e ter que calar a boca quando a culpa não é minha. Sei que, algum dia, vou bater o carro. Não quero ter que abaixar a cabeça e admitir uma culpa que não tive, simplesmente por que o outro envolvido tem uma arma de fogo. Sei que ainda vou ter um filho e ele vai brincar na casa de um amigo. Não quero nem pensar no fato do pai desse coleguinha ter uma arma em casa, mesmo que seja no último compartimento da estante mais alta, e um dos meninos ter a brilhante idéia de vê-la e manuseá-la.

Tanto a bancada do "sim" quanto a do "não" defendem a vida, e acredito que a primeira o faz de forma infinitamente mais coerente. Entretanto, a crônica de Carlos Heitor Cony no último fim de semana revela um desfecho alarmante: pouco importa o lado vencedor. Qualquer que seja o resultado, nada se resolve com um referendo paliativo. Assaltados, tentando reagir ou ligando pra polícia, somos vítimas do mesmo jeito e podemos morrer do mesmo jeito. Como relataram Celso Athayde, MV Bill e Luiz Eduardo Soares no livro "Cabeça de Porco", a sociedade é vítima de garotos de treze anos motivados exclusivamente por duas máximas: consumismo e miséria. Quando todos apontam razões para votar em "sim" ou "não", vira-se as costas para a corrupção e a falta de infra-estrutura. Se um discurso ufanista razoavelmente tangido pode dissuadir este povo que vota por impulso, o que não se dirá de um elaborado com maestria?

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