sexta-feira, abril 27, 2007

O eterno retorno em Policarpo Quaresma

Se há algo de marcante na cultura brasileira é precisamente a busca pelas “origens genuinamente nacionais”. É uma procura quase sintomática, que não se esgota ao passar dos anos e reúne as pessoas mais díspares no grupo comum daqueles que se empenham em desvendar os mistérios ocultos no gigantismo dessas comarcas sem fim. Uma série de poetas, literatos, brasilianistas, sociólogos, jornalistas e intelectuais de toda a sorte, já saíram ao menos uma vez a desbravar as terras desse fascinante “paraíso terreal”. Mas o que esses viajantes teriam descoberto de tão estimulante? A questão é saber se algo foi de fato descoberto, ou se a cada novo relato não se teria apenas acrescentado ao já sabido, como em um ciclo de eterno retorno ao mesmo.
Há de se indagar: algo muda realmente no Brasil? Se considerarmos que o seu próprio nascimento já se dá sob o signo trágico da exploração, e que, cinco séculos após os portugueses lhe atribuírem uma data de aniversário a coesão precária do país se mantêm atrelada ao binômio exploração-conservadorismo, não há, fatalmente, nada de muito novo a ser desvelado. E é precisamente essa a mola-mestra que lapida a história de seus ocupantes. Ocupantes, e não cidadãos, pois inexiste a noção de cidadania numa terra em que se desejam privilégios ao invés de direitos.
Daí o eterno retorno, afinal, o que vem sendo incessantemente descoberto? As mesmas relações seculares de subjugo e dominação continuam presentes em todos os ramos sociais. Nesse mais do mesmo, uma diferença: os mecanismos de repressão são cada vez mais eficazes.
A partir dessas idéias, formalizadas no modelo do discurso acadêmico pela socióloga Marlyse Meyer, podemos traçar um oportuno paralelo com o campo literário e evocar a obra de Lima Barreto: “Triste fim de Policarpo Quaresma”.
O livro se passa no Rio de Janeiro do início do século XX e retrata a trajetória do major Policarpo Quaresma. Marcado por um forte sentimento nacionalista, o protagonista está sempre empenhado em encontrar as melhores saídas para o Brasil, sejam elas econômicas, políticas ou culturais. Pelo seu caráter reservado e insólitas propostas nacionalistas, o major Quaresma costuma ser alvo de chacotas da esnobe sociedade retratada na obra, composta por inúteis oficiais do exército, presunçosos funcionários públicos preocupados exclusivamente com suas respectivas aposentadorias, jornalistas levianos e tantos outros tipos nocivos.
Policarpo tenta aprender o violão, mas logo se desencanta com o instrumento, não raro, visto com desconfiança pelos demais por considerarem-no um representante do espírito popular. Decide então que deve se ater às tradições genuinamente nacionais; volta-se aos indígenas e tenta formular um projeto de lei que sugere o estabelecimento do tupi como língua oficial do Brasil, fato que lhe rende várias colunas difamatórias nos jornais e causa riso geral na população. Depois de uma breve passagem pelo hospício, Policarpo se retira para o campo, estabelecendo-se em um sítio recém-adquirido, o qual ele batiza com o sugestivo nome "sossego". Deseja provar para si mesmo e para os outros a exuberante fertilidade dos solos brasileiros e dá início ao cultivo duma horta. Policarpo tem então de lutar contra saúvas, ervas daninhas e uma série de pragas. Sua lavoura não dá muitos frutos e ele ainda se vê alvo de especulação, que o aponta como suspeito perigoso, dada a neutralidade com que encara a Revolta da Armada. Por conta dessas ironias tortuosas do destino, o major acaba se envolvendo com o conflito lutando ao lado das tropas florianistas, donde se desenrolará o seu triste fim.
Posto isso, em que ponto o trágico fim de nosso desditoso protagonista se enlaça com as teses da autora Marlyse Meyer? Ora, Policarpo Quaresma é o exemplo vivo de como as coisas não mudam no Brasil. E isso é mais evidente naqueles que o cercam propriamente, pois, enquanto este representa a força reformadora incapaz de se afirmar, aqueles trazem em si a natureza repressora que apenas mantêm vivo o conservadorismo latente. Os exemplos pululam por todo o livro, mas certamente um dos mais simbólicos é o do general Albernaz, que alegou sofrer de dores no estômago e por isso foi dispensado de combater na guerra do Paraguai. Enquanto isso, escravos alistados à força perdiam suas vidas a esmo para que gente como Albernaz pudesse desfrutar momentos pacíficos no conforto de seu lar em meio a convivas supérfluos e festividades banais. Está aí cravado novamente o binômio exploração-conservadorismo.
Assim como Cristo fora o único cristão verdadeiro, e este morreu na cruz, Policarpo Quaresma, o maior dos patriotas, tem seu triste fim selado pelo estouro da baioneta de uma revolução que não é sua; de uma pátria ilusória que jamais o acolheu.

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