
Há de se indagar: algo muda realmente no Brasil? Se considerarmos que o seu próprio nascimento já se dá sob o signo trágico da exploração, e que, cinco séculos após os portugueses lhe atribuírem uma data de aniversário a coesão precária do país se mantêm atrelada ao binômio exploração-conservadorismo, não há, fatalmente, nada de muito novo a ser desvelado. E é precisamente essa a mola-mestra que lapida a história de seus ocupantes. Ocupantes, e não cidadãos, pois inexiste a noção de cidadania numa terra em que se desejam privilégios ao invés de direitos.
Daí o eterno retorno, afinal, o que vem sendo incessantemente descoberto? As mesmas relações seculares de subjugo e dominação continuam presentes em todos os ramos sociais. Nesse mais do mesmo, uma diferença: os mecanismos de repressão são cada vez mais eficazes.
A partir dessas idéias, formalizadas no modelo do discurso acadêmico pela socióloga Marlyse Meyer, podemos traçar um oportuno paralelo com o campo literário e evocar a obra de Lima Barreto: “Triste fim de Policarpo Quaresma”.
O livro se passa no Rio de Janeiro do início do século XX e retrata a trajetória do major Policarpo Quaresma. Marcado por um forte sentimento nacionalista, o protagonista está sempre empenhado em encontrar as melhores saídas para o Brasil, sejam elas econômicas, políticas ou culturais. Pelo seu caráter reservado e insólitas propostas nacionalistas, o major Quaresma costuma ser alvo de chacotas da esnobe sociedade retratada na obra, composta por inúteis oficiais do exército, presunçosos funcionários públicos preocupados exclusivamente com suas respectivas aposentadorias, jornalistas levianos e tantos outros tipos nocivos.
Policarpo tenta aprender o violão, mas logo se desencanta com o instrumento, não raro, visto com desconfiança pelos demais por considerarem-no um representante do espírito popular. Decide então que deve se ater às tradições genuinamente nacionais; volta-se aos indígenas e tenta formular um projeto de lei que sugere o estabelecimento do tupi como língua oficial do Brasil, fato que lhe rende várias colunas difamatórias nos jornais e causa riso geral na população. Depois de uma breve passagem pelo hospício, Policarpo se retira para o campo, estabelecendo-se em um sítio recém-adquirido, o qual ele batiza com o sugestivo nome "sossego". Deseja provar para si mesmo e para os outros a exuberante fertilidade dos solos brasileiros e dá início ao cultivo duma horta. Policarpo tem então de lutar contra saúvas, ervas daninhas e uma série de pragas. Sua lavoura não dá muitos frutos e ele ainda se vê alvo de especulação, que o aponta como suspeito perigoso, dada a neutralidade com que encara a Revolta da Armada. Por conta dessas ironias tortuosas do destino, o major acaba se envolvendo com o conflito lutando ao lado das tropas florianistas, donde se desenrolará o seu triste fim.
Posto isso, em que ponto o trágico fim de nosso desditoso protagonista se enlaça com as teses da autora Marlyse Meyer? Ora, Policarpo Quaresma é o exemplo vivo de como as coisas não mudam no Brasil. E isso é mais evidente naqueles que o cercam propriamente, pois, enquanto este representa a força reformadora incapaz de se afirmar, aqueles trazem em si a natureza repressora que apenas mantêm vivo o conservadorismo latente. Os exemplos pululam por todo o livro, mas certamente um dos mais simbólicos é o do general Albernaz, que alegou sofrer de dores no estômago e por isso foi dispensado de combater na guerra do Paraguai. Enquanto isso, escravos alistados à força perdiam suas vidas a esmo para que gente como Albernaz pudesse desfrutar momentos pacíficos no conforto de seu lar em meio a convivas supérfluos e festividades banais. Está aí cravado novamente o binômio exploração-conservadorismo.
Assim como Cristo fora o único cristão verdadeiro, e este morreu na cruz, Policarpo Quaresma, o maior dos patriotas, tem seu triste fim selado pelo estouro da baioneta de uma revolução que não é sua; de uma pátria ilusória que jamais o acolheu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário